A vida é um plano-sequência, mas a percepção que temos do mundo é fragmentada! Este é um espaço para a reflexão sobre a influência mútua do cinema em nossas vidas e vice-versa.

sexta-feira, 1 de julho de 2011

A compreensão do filme: uma experiência subjetiva

Quem nunca na vida saiu de uma sala de cinema desnorteado, com uma sensação de que não compreendeu o filme em sua totalidade? É interessante como uma coisa, tão subjetiva como a apreensão de um filme por parte do indivíduo, possa aparecer tantas vezes associada a uma questão extremamente simplista, manifestada na corriqueira frase: “Entendeu o filme?”. De fato, o entendimento mínimo de um filme requer por parte do espectador, um arcabouço cultural mais ou menos afinado ao meio que o produziu.
Vamos pensar no exemplo citado por Carrière (1995) em seu livro A linguagem secreta do cinema, quando ele conta o curioso caso em que uma tribo africana assiste a uma projeção de cinema. Nós, adaptados a essa linguagem e inseridos nela, não conseguimos perceber seu grau de complexidade, e só percebemos isso quando alguém que não partilha desse “conjunto de códigos” demonstra sua percepção a respeito de um filme. No caso dos africanos, eles não conseguiam entender a utilização de um plano fechado numa mosca, argumentando: “não existem moscas tão grandes assim”. Ou seja, a mosca filmada de perto e projetada no tamanho da tela assustou os espectadores da tribo. Isso não parece tão absurdo se voltarmos ao passado, no período de surgimento do cinema, e constatarmos que o close facial deixava as pessoas perplexas se questionando: “mas onde foi parar o resto do corpo da pessoa?” Um dos casos mais famosos na história do cinema pode ilustrar claramente o estranhamento que a nova tecnologia causava nas pessoas. Refiro-me à famosa cena do filme A chegada do Trem produzido pelos irmãos Lumière. Reza a lenda que o público saiu correndo ao ver o trem vindo em sua direção.
Isso mostra que, da mesma forma que aprendemos nossa língua através de nosso convívio social, igualmente também aprendemos a “ler” a linguagem do cinema, que, desde o seu surgimento, vem evoluindo e se complexificando de pouco em pouco, dando saltos qualitativos cada vez que algum autor cria uma nova estética que é internalizada pelo público. Entretanto, mesmo para nós, habituados aos padrões cinematográficos, muitas vezes não conseguimos dar conta de compreender um filme. Diversos fatores podem tornar fácil ou difícil a compreensão de uma obra fílmica. Da mesma forma como na literatura, no cinema também existem obras mais acessíveis e obras consideradas mais herméticas.
Um dos fatores pode ser o nível de informatividade. Um filme pode trazer, em seu enredo, temas de alto grau de informatividade: referências específicas a assuntos que não são de conhecimento geral, e que, portanto, só serão inteligíveis para um determinado grupo, desde que este grupo tenha a “bagagem” necessária. Um “vídeo-manual” para utilização da nova versão do sistema Cadastro Único, será muito mais inteligível para pessoas familiarizadas aos conceitos de informática e rotinas burocráticas assistencialistas, por exemplo. No entanto, mesmo o espectador que não conhece a fundo esses conceitos, de certo compreenderá o propósito do filme (capacitar pessoas para operacionalizar o sistema). Isso porque, uma obra feita com este propósito, naturalmente, se utilizará de “fórmulas” cinematográficas já bem conhecidas e internalizadas pelo público.
Outra coisa completamente diferente é pensar no nível de inovação da linguagem cinematográfica. Filmes comerciais, visando atingir o grande público, elaboram obras cuja linguagem não traz grandes inovações em sua estética. A decupagem clássica, comumente usada nas produções hollywoodianas para causar a sensação de realismo e naturalismo, é o tipo de “fórmula” mais aceita pelo público. Elaborar uma obra fílmica respaldada nos padrões da decupagem clássica é hoje, a melhor forma de garantir a aceitação do grande público. A razão deste fenômeno é simples: a estética realista naturalista hollywoodiana é como uma fórmula testada e aprovada. As pessoas gostaram, se habituaram, e hoje em dia estão mais do que familiarizadas com ela.
Qualquer cineasta que almeje romper com esse padrão, terá de estar consciente dos obstáculos que encontrará pela frente. As formas de manipular os elementos cinematográficos, como o posicionamento da câmera, o som, a iluminação, edição etc., são infinitos. Mas, alterar algumas dessas “combinações de uso convencionais” pode gerar algo análogo a uma mudança de convenção em nossa língua, por exemplo. É claro que essas mudanças também ocorrem na nossa língua, mas é importante observarmos que elas só podem ocorrer muito lentamente, caso contrário geraria um caos e faria com que as pessoas ficassem deslocadas e incomunicáveis. No cinema, esse ruído de comunicação também pode ocorrer quando algum diretor mais ousado busca inovar na estética. Manipulando de formas variadas os elementos cinematográficos, ele pode conseguir níveis de interação mais profundos com os espectadores, é verdade. Mas se essa mudança for muito brusca, pode ocorrer de ninguém se identificar com a sua obra, por não compreendê-la. Sendo assim, ela perde o seu valor.
Filmes como Amnésia ou Irreversível, foram filmes ousados, que romperam com a forma de narrativa tradicional. A trama não é tão complexa, mas a inversão da linearidade narrativa causa certo estranhamento nos espectadores. Esse tipo de inovação estética é bastante ousado, diria até arriscado, pois desafia a segurança de retorno financeiro, pensando no filme como produto mercadológico. Filmes menos comerciais têm o privilégio de poder ousar mais na manipulação e criação de uma estética singular. Já filmes compromissados com a bilheteria têm de tomar mais cuidado, pois uma inovação pode tanto dar certo, como foi o caso do filme Amnésia, cujo público aceitou e compreendeu, como também dar errado como é o caso de alguns filmes que acabam simplesmente ignorados pelo público e pela crítica.
Existe outro fator. Algumas obras são ricas por sua construção metafórica ou sentido alegórico. Filmes de arte costumam atuar na dimensão alegórica para atingir o espectador num nível mais psicológico do que lógico. Filmes como os do diretor espanhol Luis Buñuel são verdadeiras viagens extra-sensoriais. Tentar compreender um filme desses pautado na lógica racional ou na busca de uma “moral da história” é uma tarefa inútil.
Por outro lado existem filmes que, embora complexos, são feitos com o intuito de serem inteligíveis no nível lógico. Só que acabam sendo difíceis de serem compreendidos em razão da complexidade da sua trama. Pode ser uma narração muito fragmentada, com muitos personagens; falta de clareza ou falta de “tomadas conectivas”. Geralmente filmes assim têm de ser assistidos mais de uma vez e com bastante atenção em cada pequeno detalhe.
Outros filmes induzem, propositalmente, o espectador a dúvida com relação a algum tipo de compreensão da obra. É possível que, após reassistir o filme Birth, uma ou duas vezes, você concorde com o seu colega que o garoto de 10 anos, definitivamente, não era a reencarnação do falecido marido de Anna (Nicole Kidman). No entanto são obras que dão margem a múltiplas interpretações.
O debate acerca da questão de um filme possuir ou não um significado fixo, traz algumas contradições. Afinal, a leitura de um filme é, antes de tudo, uma experiência subjetiva. Sabemos que um filme, assim como qualquer texto, não contém em si uma verdade absoluta ou um núcleo de significado específico cujo público deve compreender. Mas não podemos simplesmente afirmar que todo e qualquer texto possui infinitas possibilidades de leituras e interpretações, não levando em conta que existe “aquilo que o autor desejou transmitir”. Graeme Turner (1993) diz que:

É claro que precisamos estar conscientes tanto dos fatores textuais quanto dos “extratextuais” em qualquer compreensão que o público tenha de um filme. O significado do filme não é simplesmente uma propriedade de seu arranjo específico de elementos; seu significado é produzido em relação ao público, e não independentemente. Ao percebermos isso vemos a possibilidade de aceitar que o público possa encontrar uma variedade de significados em qualquer texto cinematográfico; seu significado não é necessariamente “fixo”, imutável.

O autor vai além, demonstrando que existe um hiato entre teoria e prática quando se fala das múltiplas interpretações que podemos fazer de um filme:

Isso causa problemas no nível prático. A maioria de nós que assiste a um filme sentirá que há algum limite ao tipo de leituras a que se pode sujeitá-lo [...] Por um lado, as leituras do público ocupam um campo teórico de possibilidades quase infinitas; por outra, na prática verificamos que embora as leituras do público possam diferir, ainda assim estarão contidas numa amplitude relativamente discreta de possibilidades. Em suas tentativas de lidar com isso, os estudos culturais usam várias táticas, desde a recuperação da idéia de que o texto controla seus leitores até o destronamento do texto para vê-lo em sua totalidade como produto de práticas de leitura socialmente criadas.

Turner (1993) se utiliza do trabalho de Stuart Hall (1977) para falar sobre uma “leitura preferencial” dos textos. Utiliza-se também do trabalho Bennett e Woollacott, autores do livro Bond and Beyond: the Polítical Career of a Popular Hero (1987) para demonstrar em que nível se dá essa multiplicidade de interpretações ainda que se reconheça a existência de uma “leitura preferencial”. Os autores dessa obra analisam as mudanças de significados que a figura de James Bond sofreu ao longo de sua evolução. Afirmam que a figura do herói é produto de todos os suportes aos quais está inserido (revistas, artigos, propagandas, série, filmes). E que mudando qualquer elemento de sua característica em qualquer um desses “veículos” ocorrerá uma mudança completa na concepção que o público tem a respeito de James. Isso mostra que a percepção do público é mutável, e isso possibilita de fato diversas leituras do mesmo filme. “Na prática, porém, há pelo menos algumas determinadas propriedades das narrativas cinematográficas, e porque qualquer membro de um público encontra-se num momento específico da história, ele ou ela dispõe de um conjunto limitado de opções por meio das quais pode ver um filme.” (TURNER, 1993, p. 126).
 Tomo como exemplo para ilustrar essa situação, um debate que tive com um colega a respeito do filme Vanilla Sky refilmagem de Abre Los Ojos do diretor Alejandro Amenábar. Sua trama é complexa, e a forma como a estória é narrada procura deliberadamente conduzir o espectador a interpretações equivocadas. Somente no final é que emerge toda revelação, dando sentido aos acontecimentos surreais que vinham perturbando a vida do protagonista David. Na primeira vez que assisti ao filme, confesso que não pude compreender toda a trama, o que me rendeu muitas reflexões, divagações e a certeza de que deveria assisti-lo outra vez. Assistir um filme sabendo a intenção do autor faz você reparar em coisas que anteriormente passaram despercebidas. É assim com os textos escritos também. Depois de assisti-lo novamente pude entender o que, no âmbito diegético, era sonho e o que era realidade, enfim pude apreender o propósito narrativo e a intenção da estória.     
Conversando com esse colega, descobri que sua leitura diegética divergia completamente da minha. Para esse meu colega, David era um personagem de uma das histórias do seu melhor amigo, o escritor Brian. Acreditava que tudo aquilo de criogenização, Life Extention, enfim, tudo isso fazia parte das alucinações do personagem David, criado pelo escritor, o mesmo amigo que lhe apresentou Sofia. Poderíamos dizer que essa é uma possível interpretação. Mas e quanto ao propósito dos criadores da obra?        Conversando com outras pessoas, lendo resenhas sobre o filme, entrevistas dos autores, pude notar que existia um consenso a respeito da interpretação, e esta convergia com a leitura que fiz. Nesse sentido me sinto inclinado a acreditar que a minha leitura foi a mais acertada, enquanto que a do meu colega estava equivocada.     Pela complexidade da história talvez, a retomada final (me refiro ao momento em que a narrativa se desdobra para esclarecer todos os mistérios da trama) não tenha sido suficiente para que ele pudesse compreender toda a dimensão do emaranhado diegético. Na maioria das vezes somos, nós espectadores, os últimos a descobrir a resolução dos mistérios de uma estória, e sempre no final do filme. Poucos quebram essa convenção como Um corpo que cai de Alfred Hitchcock. Nele, a misteriosa trama é revelada antes para nós espectadores, e só depois ao personagem John Ferguson.
Utilizei-me dessa pequena digressão para ilustrar os dilemas que envolvem a relação do público com o filme, sua apropriação da narrativa e das imagens, bem como a forma que ele as digere e lhes atribui significado. O conjunto de convenções, que propicia uma “leitura preferencial” do filme, nas obras cinematográficas consideradas obras-de-arte ou filmes experimentais, é absurdamente mais amplo que nos filmes convencionais. Alguns têm até como inerente ao seu “conjunto de convenções” o objetivo de desnortear o espectador ao invés de guiá-lo. Impõe-se a ele a responsabilidade de atribuir significado.
Nas alegorias usadas nos filmes do Cinema Marginal brasileiro, por exemplo, há, como diz Ismail Xavier (1993), uma tensão entre as duas partes (e aqui ele se refere às duas partes que compõem a dicotomia alegórica), um movimento dialético entre a fragmentação (esta que cumpre a função de problematizar o sentido), e a totalização (que procura afirmá-lo plenamente). É dessa tensão que resulta a lacuna que distancia e dificulta a atribuição de sentido e conseqüente compreensão da mensagem em sua totalidade. Sendo assim, é compreensível que a representação em alguns filmes atinjam níveis de total obscuridade, fazendo com que o espectador se sinta agredido e algumas vezes até injustiçado por estar sendo privado da compreensão do sentido da obra.



REFERÊNCIAS

Bibliografia

CARRIERE, Jean-Claude. A linguagem secreta do Cinema: Coleção 40 anos 40 livros. RJ: Nova Fronteira, 1995

TURNER, Graeme. Cinema como prática social [tradução Mauro Silva]. – São Paulo: Summus, 1997.

XAVIER, Ismail. Alegorias do Subdesenvolvimento: Cinema Novo, Tropicalismo, Cinema Marginal. Editora Brasiliense, SP. 1993

Filmografia

AMENÁBAR, Alejandro. Preso na Escuridão. Direção de Alejandro Amenábar. Espanha, 1997, 119 min.

CROWE, Cameron. Vanilla Sky. Direção de Cameron Crowe. Paramount Pictures.  EUA, 2001.136 min.

GLAZER, Jonathan. Reencarnação. Direção de Jonathan Glazer. EUA, 2004, 100 min.
HITCHCOCK, Alfred. Um corpo que cai. Direção de Alfred Hitchcock. EUA, 1958, 128 min.

NOLAN, Christopher. Amnésia. Direção de Christopher Nolan, EUA, 2001, 120 min.


NOE, Gaspar. Irreversível. Direção de Gaspar Noe, FRA, 2002, 99 min.

Por Harold

5 comentários:

  1. Belissimo Post! Parabens !!!

    ResponderExcluir
  2. ótimo texto.
    se bem que meu pai faz parte do público "normal" e adorou amnésia, alugou umas 5 vezes em VHS, e até recomendou para os amigos dele, que não entenderam o filme.

    ResponderExcluir
  3. Comigo isso acontece em 95% dos filmes que eu assisto!Hhsuahsauhsauhsauhsaush.

    ResponderExcluir
  4. Hahaha, eu assisti 3 vezes Amnésia, até entender que não era para entender. O filme transmite a amnésia sofrida pelo personagem, pode ser que ele está perto de encontrar, pode ser que já encontrou o assassino, ele não vai lembrar. Ele vai viver a constante busca até morrer ou se curar da amnésia. Outro filme é Waking Life, diálogo muito complexo, você é bombardeado de informações que chega a ser difícil de compreender, para dar sensação do sonho lúcido.

    ResponderExcluir
  5. Lucas,

    Waking Life é um filme que eu assisto periodicamente desde 2005. Já devo ter visto umas 10 vezes, sem exagero. Os diálogos são realmente bastante complexos e fragmentados. Além de abordar assuntos de diferentes áreas de conhecimento (de linguística a fisica quântica, passando por teorias políticas). Com certeza o intuíto do filme não é fazer o espectador compreender tudo. E essa sensação de sonho lúcido que você falou, realmente acontece com quem assiste. É até difícil dizer se agora, depois de assistir um monte de vez, eu entendo mais ou menos comparado com a primeira vez..rs

    Futuramente pretendo escrever algo sobre esse filme.

    Valeu pelo comentário
    abraços

    ResponderExcluir