A vida é um plano-sequência, mas a percepção que temos do mundo é fragmentada! Este é um espaço para a reflexão sobre a influência mútua do cinema em nossas vidas e vice-versa.

sexta-feira, 22 de julho de 2011

Cinema Marginal: os filmes mais avacalhados de todos os tempos

          Houve um período na história do cinema brasileiro em que uma galera de cineastas meio que desistiu de querer mudar o mundo com os filmes. Essa galera desencanou de tentar se inserir na indústria cinematográfica, de atingir o grande público e de fazer cinema revolucionário. Eles literalmente tocaram o “foda-se” e partiram para o experimentalismo. Essa moçada deu origem a um movimento que hoje em dia é conhecido como Cinema Marginal Brasileiro.
            Alguns conhecidos e emblemáticos filmes desse período são: O Bandido da Luz Vermelha (1968) de Rogério Sganzerla; Matou a Família e foi ao Cinema (1969) de Julio Bressane; Meteorango Kid: o herói intergaláctico (1970) de André Luiz Oliveira e Hitler III Mundo (1969) de José Agrippino de Paula. Existem pelo menos mais uns 20 ou 30 títulos que também são considerados como parte deste movimento.
            A treta começou um pouco antes, e foi mais ou menos o seguinte: uma galera de jovens cineastas militantes, politizados, subversivos, revoltosos e revolucionários, achou que esse lance de brasileiro ficar consumindo filme hollywoodiano (cultura imposta pelo opressor imperialista) tinha que mudar. Isso de cineasta brasileiro ficar copiando estética americana também era de fuder. Influenciados pelo neo-realismo italiano, a nouvelle-vague e todo aquele lance de “filmar a realidade”, resolveram fazer filmes de caráter documental, tecendo críticas sociais, mostrando a pobreza, as favelas, os problemas sociais, a desigualdade.
            Enfim, essa galera queria usar o cinema como arma política para mudar a realidade social e retratar nas telas o subdesenvolvimento do país. Assim surgiu o Cinema Novo cujos filmes mais emblemáticos são Rio 40 graus (1955) de Nelson Pereira dos Santos; Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) de Glauber Rocha e Os Fuzis (1964) de Ruy Guerra. Aqui também, é necessário dizer, existem outros filmes e diretores que, embora eu tenha deixado de mencionar, também fazem parte do movimento.
          Só que aí surgiu um problema: alguns cineastas desse movimento, como o esquentadinho Glauber Rocha, por exemplo, começaram a achar que esse negócio de produzir filmes afinados à estética hollywoodiana para conseguir atingir o grande público, era “para os fracos”. A grande sacada, era inventar uma estética fílmica genuinamente brasileira. Pensando assim, alguns cineastas partiram para o cinema autoral. E vejam bem meus amigos: partir para o cinema autoral era como adentrar numa área mais ou menos arriscada: um campo intermediário entre a adoção da estética hollywoodiana (que era a garantia de atingir o grande público) e o campo do cinema de invenção e experimental (que era quase como um atestado de rompimento com o grande público).
            Os cineastas mais radicais partiram para o experimentalismo absoluto que resultou no Cinema Marginal, movimento responsável pela produção dos filmes mais porra-louca da história do cinema. Se fôssemos imaginar um debate estilo mesa redonda ( ou triangular) entre Glauber, Sganzerla e Nelson, seria algo do tipo:
Nelson: -Porra Glauber, isso vai dar merda. Esse lance de Cinema autoral é arriscado. Vai afastar o público. Se o público não assistir nossos filmes não haverá transformação social. Você está se afastando do propósito do Cinema Novo
Sganzerla: -Que mané-se-afastando do Cinema Novo o caralho. A proposta do Cinema Novo era “uma câmera na mão e uma idéia na cabeça”. Parece mais é que o Cinema Novo é que está se afastando de nós. Tem mais é que radicalizar, partir para o experimentalismo mesmo. Isso de promover transformação social com esse cineminha pedagógico, é pura ilusão. O negócio é avacalhar. Quando a gente não pode fazer nada a gente avacalha. Avacalha e se esculhamba. Fica frio Glauber, você não está se afastando da proposta do Cinema Novo não.
Glauber: -Calma moçada, O Cinema Novo sou eu.

          O próprio Glauber começou a fazer uns filmes tipo Câncer (1968) que é considerado hoje por muitos como um filme típico do Cinema Marginal. Mas vocês devem estar pensando: “mas porra, o que tem de tão foda nesses filmes marginais?” Tem grito, tem sangue, tem pessoas mastigando de boca aberta, tem produções precárias, amadoras, sujas. Tem microfones aparecendo acidentalmente em cena. Tem planos repetidos por descuido do editor. Têm narrativas fragmentadas, representações absurdas, falta de coerência nas tramas. Tem representações metafóricas desconectadas do objeto ao qual pretende se referir.
          Assistam vocês a cena inicial de Bang Bang (1971), um filme de Andrea Tonacci, para ter uma noção da doidera. Primeiro que ele não tem conexão nenhuma com as outras seqüências do filme. Um cara folgado pega um taxi e fica xingando o taxista, além de ficar metendo o bedelho na forma como o cara dirige. O cara é tão chato que acaba tirando o taxista do sério. A cena é feita com a câmera parada dentro do carro e não há cortes. É como se estivéssemos assistindo o episódio do banco de trás do carro. É difícil ouvir o diálogo porque o som é péssimo. A próxima cena não tem conexão nenhuma com esta. Falta aquela pedagogia narrativa a qual estamos acostumados dos filmes hollywoodianos. O foda é ter que admitir que a seqüência é muito boa.
          

          Outra coisa bastante comum nas produções marginais é o uso da metalinguagem, ou seja, filmes que abordam a questão do próprio cinema. Em Meteorango Kid existe uma cena bastante peculiar em que um jovem cineasta comparece a uma agência para negociar a produção de seu filme. O discurso do empresário é um deboche da industria cinematográfica que só contempla produções de conteúdo vulgar, aquelas com potencial de atingir o grande público.


“... é um macete que vocês jovens não percebem. Só nós que temos experiência é que sabemos. Por exemplo: o povo vai ao cinema para se distrair, não é isso? Então o que é que eu faço? Boto mulher nua; tiro como o diabo; porrada; muito peito; muita bunda, e pronto. É assim que se ganha dinheiro com cinema, meu filho. Esse negócio de fazer filme de arte, todo complicado, é pura besteira...”

Meteorango Kid: o herói intergaláctico


          Mas acho que a cena ícone da vagabundagem, porralocagem e falta de perspectiva - típica do clima que compunha o cenário político do país naquele momento pós-golpe de 64 - é a cena deste mesmo filme, em que os três amigos puxam um fumo e divagam sobre temas como o trabalho, o futuro e a marginalidade.


          Considerado como uma das mais radicais experiências do Cinema Marginal, o filme Hitler III Mundo, do doidão José Agrippino, é o mais fiel retrato da “porraloqueragem” e maluquice. E eu não vou nem falar do Jô soares vestido de samurai (que mais parece uma gueixa), querendo arranhar a televisão. Mas também não é de se admirar, né gente. José Agrippino foi aquele que escreveu o livro PanAmérica (1967), livro que mais influenciou o movimento tropicalista. PanAmérica, apesar de lidar com temas de grande importância na época, - e de utilizar metáforas que se referiam ao imperialismo norte americano, a supremacia do cinema hollywoodiano, a paranóia generalizada que tomou conta dos brasileiros por causa da censura, - apesar de tudo isso, ele não se constitui como uma obra coerente do ponto de vista narrativo.
            Nele temos a Ku Klux Klan, o jogador Joe Di Maggio decepando a platéia do jogo de beisebol, as arraias voadoras, a pederastia entre os soldados, a gravidez da Marilyn, a tara do protagonista por crianças, o ovo frito cósmico, macacos peritos em caricaturas, os "comilões" Joe e Carlo devorando bois na disputa pela supremacia do cinema, as diversas brigas, a relação do protagonista com Marilyn (que ora é assassinada, ora se suicida, mas que no capítulo seguinte ressurge das cinzas, desta vez grávida), Joe di Maggio explodindo e se transformando em “caralhinhos voadores” sobrevoando a ONU, agentes do DOPS com pescoços de plástico. Isso para citar apenas algumas das situações malucas criadas pelo autor do livro. Então acho que vocês podem imaginar a loucura que não é o filme desse cara né.

          Eu lembro a primeira vez que vi o Bandido da Luz Vermelha. Foi o primeiro do Cinema Marginal que eu vi. Me senti agredido. Depois vierem outros como Caveira my Friend (1970) (esse foi o pior) de André Luiz Oliveira, Copacabana Mon Amour (1970) do Sganzerla, O pornógrafo (1970) de João Callegaro, Sem essa, Aranaha (1970), também do Sganzerla (esse é muito foda; tem o Zé Bonitinho.kkk) Os Monstros de Babaloo (1970) de Elyseu Visconti. Aliás, este último também é digno de comentário. Puta merda, que filme caixa preta! Ele retrata uma família de burgueses. O patriarca é um ricão esnobe, gordo. A mãe é uma interesseira metida a madame. O mais figura é o filho. Esse moleque é um escroto, meio abestalhado e frozô. Todos eles feios e caricatos. Só a filha que não. Também pudera né. A filha é interpretada por nada menos que Helena Ignez. Mas mesmo assim, ela é uma sádica nojenta que vive judiando da criada.

          Aliás, nessa época, Helena era considerada a musa do Cinema Novo. Se não me engano era casada com o Glauber, depois ficou com o Sganzerla e depois o Júlio Bressane. Não sei se exatamente nessa ordem. Mas ela era mesmo a mulher de todos. Talvez por isso ela tenha interpretado Angela Carne e Osso no filme A mulher de todos (1969) de Rogério Sganzerla (rs). Enfim, essa pérola de Elyseu Visconti é mais uma das bizarrices cinematográficas nacionais. Tem também os filmes do Zé do Caixão que alguns consideram como Cinema Marginal, mas outros dizem que não. Vai entender.
            Enfim, alguns cineastas fizeram as pazes com o grande público e com a indústria cinematográfica, outros insistiram no cinema autoral, experimental e sentaram no bilau. Alguns como Bressane e Sganzerla até conseguiram boas bilheterias com suas produções da Belair (Produtora de filmes fundada por ambos mencionados). O Bandido da Luz Vermelha teve bastante público e hoje virou um cult absoluto. Bressane, se não me engano produz filmes até hoje. Esse sim foi um dos poucos que, mesmo fazendo umas obras malucas, conseguiu se manter no circuito do cinema.
            Para finalizar: esses dias assisti um filme mais ou menos recente dele (o Bressane). Se chama Filme de Amor (2004). Não é tão doidão quanto Matou a Família e foi ao Cinema ou O Anjo Nasceu (1969), mas também não é nada normal. Não tem história, trama, peripécias, nem nada. São três pessoas que saem de sua rotina diária, se encontram num apartamento para ficar trepando, enchendo a cara, falando putaria e recitando poesia. Tem um plano feito com câmera frontal enquadrando bem de perto a vagina da mulher. O plano dura quase um minuto. Eu vendo aquilo só me perguntava, “por que?“

Por Harold

4 comentários:

  1. Ver esse tipo de filme deve ser como ver um filme do Godard: Vc não pode ter por perto nenhum objeto cortante nem medicamentos pra não se suicidar

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. Cara, to a um semestre pesquisando cinema marginal e é material pra caralho, passei um tempo só pra decidir por onde começar. Se eu tivesse lido esse teu texto há um semestre atrás, teria me poupado umas dores cabeça. Adorei! (:

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  4. Muito bom. Muito bom mesmo!
    Parabéns e obrigado!

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