A vida é um plano-sequência, mas a percepção que temos do mundo é fragmentada! Este é um espaço para a reflexão sobre a influência mútua do cinema em nossas vidas e vice-versa.

domingo, 3 de julho de 2011

A traição feminina na comédia romântica: a preservação da inocência e o fenômeno de desresponsabilização.

           Com a “não-tão-recente”, porém contínua e ainda vigorosa enxurrada de produções norte-americanas das tão conhecidas comédias românticas, parece difícil acreditar que ainda existam pessoas que tenham paciência para aturar 90 minutos de pura previsibilidade, onde um magricelo nerd – usando óculos tipo “fundo de garrafa” remendado com uma fita adesiva – após anos de sofrimento e anonimato, consegue finalmente dar a volta por cima e namorar a garota mais popular do colégio (que, via de regra, é a chefe de torcida), ou onde aquela menininha sem-sal consegue alcançar o seu, tão almejado objetivo, transformando o bad boy da turma num rapaz dócil e romântico.
            A diversidade de estórias é grande, mas a fórmula é exatamente a mesma: casal desajustados, que após inúmeros encontros e desencontros se descobrem apaixonados e acabam juntos. O clímax é geralmente quando o rapaz, na eminência de perder o amor da sua vida, corre desesperadamente atrás de sua amada para esclarecer os equívocos do destino, ou para se desculpar de alguma falta que tenha cometido.
 
              Alguns num tom mais picante e debochado, outros num tom mais dramático e romântico, mas quase todos estes filmes têm um ponto em comum. Existe um ingrediente que compõe 9 a cada 10 filmes deste gênero. Não falo de outra coisa senão a questão da traição.
            Uma pesquisa feita pela antropóloga Mirian Goldenberg, demonstrou que a grande maioria dos homens, respondendo à pergunta sobre quais as razões pelas quais ele traia, argumentou que o desejo incontrolável era o maior causador. Esta mesma pergunta foi feita às mulheres. A maioria delas, atribuiu suas traições aos “descuidos” por parte dos homens, como por exemplo: “Ele andava muito grosso” ou “Ele não me dava mais atenção” ou “Ele parou de dizer que me ama”, ou seja, jamais traziam para si a responsabilidade pelo ato. Podemos, então, perceber junto com a pesquisadora que o homem é o único que se percebe e é percebido como sujeito da traição, pois, as mulheres, mesmo quando traem, continuam se percebendo como vítimas.
            Mesmo após tantas vitórias ao longo de anos de lutas por reconhecimento, continuamos vivendo numa sociedade sexista, e as mulheres ainda continuam sendo vistas (e, o que é pior, vendo a si mesmas) como passivas ao invés de agentes, como incapazes de assumir responsabilizações por seus atos, e este é um fenômeno que pode ser visto também nas telas de cinema.
            Neste artigo, pretendo demonstrar como este fenômeno se manifesta (mesmo que de forma mascarada ou oculta) nas narrativas fílmicas norte-americanas, particularmente nas denominadas comédias românticas, gênero que vem se destacando nos últimos anos por alcançar altos índices de bilheteria e grande aceitação, principalmente entre os jovens.
            A maioria destes filmes – mesmo nos dias de hoje, depois da explosão de críticas por parte das feministas no que se refere ao papel que é delegado à mulher na sociedade – continua colocando a mulher como objeto maleável, vítima passiva das vontades e desejos dos homens, presa indefesa das deliberações masculinas ou, pelo menos, almejado troféu que o agente masculino travará verdadeira batalha para alcançar em nome de capricho e auto-afirmação. É claro que nos dias atuais, diante da crescente manifestação de grupos feministas por direitos iguais e até mesmo apologia à figura da mulher independente, esse fenômeno não pode aparecer senão de forma mascarada. É claro que ninguém “engoliria” hoje uma “Amélia” nas telas. Por isso, na aparência, mas somente na aparência, as figuras femininas do cinema aparecem como mulheres modernas e independentes. Mas se observarmos com mais atenção iremos descobrir que o germe sexista permanece ali encubado.
            Percebemos que essas narrativas continuam sendo norteadas no sentido de preservar a inocência e falta de autonomia da figura feminina. Elas não são donas de seus atos. Suas ações não têm a mesma malicia e premeditação racional que as inerentemente masculinas e, por isso, as mulheres nunca têm culpa, mesmo quando traem, pois seus atos sempre são justificados por sua indefensabilidade e “fraqueza emocional”. Enfim, sua “natureza inocente” jamais permitiria que ela praticasse um ato vil como é considerado o adultério, a menos que fosse justificado por uma ação malévola do seu parceiro. A fidelidade seria, desta perspectiva, como uma moeda de troca com a qual a mulher pudesse “negociar” com o seu parceiro, deixando de lhe “pagar” logo que ele parasse de atender às suas expectativas.
            O filme Cartas para Julieta (2010) é um modelo clássico desta “jogada”. Nele podemos ver de maneira bastante clara como ela acontece. Sophie, a protagonista, numa pré-lua-de-mel na Itália com o marido Victor, conhece Charlie e se apaixona. Ela é a protagonista, a heroína, por isso a estória tem de preservar sua integridade moral. Qual o dispositivo que a narrativa usa para lograr êxito nesta empreitada? Simples: à medida que Sophie vai aprofundando seu envolvimento sentimental com Charlie, seu marido começa a agir mais friamente, mostrando-se muito mais preocupado com os negócios do seu restaurante do que com a própria noiva. Isso então, legitima a traição de Sophie.
            Como seria se o marido não agisse dessa forma? E se ele permanecesse apaixonado por Sophie, interessado nela e mantendo uma conduta impecável de “noivo ideal”? Imaginem como isso não iria denegrir a imagem casta da pobre Sophie.

           Em Apenas Amigos (2005) a história parece diferente, mas o tratamento que a narrativa dá à questão da traição feminina é bastante similar. Chris e Jamie são amigos. Chris sempre foi secretamente apaixonado pela amiga, mas nunca teve coragem de abrir seu coração porque era inseguro. O típico estereótipo do garoto gordo, sem muitos amigos e tímido que nutre amor platônico pela amiga, que além de linda é também a garota mais popular do colégio. Anos mais tarde ele a reencontra. Desta vez rico, muito mais seguro (até mesmo um pouco arrogante), em boa forma e famoso. Tornou-se um grande empresário no meio musical. Jamie, entretanto, começa a namorar um exímio violonista, ex-colega de classe que, no passado, já havia tentado namorar a garota. O romance se desenvolve em torno dos protagonistas Chris e Jamie, por isso é óbvio que ela acaba deixando o violonista para ficar com Chris. Mas, também neste caso o dispositivo usado é exatamente o mesmo. Jamie não podia parecer uma traidora sem escrúpulos. Mais uma vez a história foi resolvida da forma mais conveniente: o namorado de Jamie mostrou-se um canalha, que nem ao menos gostava dela, mas, pelo contrário, estava apenas se vingando por ter sido “chutado” por ela no passado. Isso torna a situação muito mais fácil. Agora o caminho está livre para Chris, e a integridade moral de Jamie está preservada. Seu caráter permanece intacto.
 
              O filme A Garçonete (2007) é um dos que reflete com mais exatidão esta “legitimização” da traição feminina. A protagonista é pintada com a pureza de uma criança. Ela é meiga, prendada, sonhadora. Ela cozinha tortas fantásticas, cujo sabor reflete seu estado de espírito e tem o poder de cativar pelo paladar àqueles que a experimentam. Jeena, representada por Keri Russell (rosto bastante conhecido da série Felicity: a série contava a estória de uma mocinha confusa e espirituosa que vivia permanentemente dividida entre os apaixonados Noel e Ben) é uma garçonete que junta dinheiro para poder abandonar o marido.
            Ninguém no mundo seria capaz de julgar a pobre Jeena por trair o seu marido controlador com o carinhoso e bom moço Doutor Pornatter. Mesmo não amando mais o seu insensível marido, a moça ainda tem a “perseverança moral” de podar as investidas do doutor bonitão. Ela resiste bravamente nas primeiras cenas. Mas é claro que acaba cedendo. Jeena se entrega ao seu amante e passa a viver um doce e secreto romance, com apoio e aprovação da maioria dos espectadores que acompanhou sua a dura e triste estória antes de encontrar a felicidade com o bom doutor.
 
          Concordemos que inversão da fórmula não funcionaria. A traição masculina jamais é vista com benevolência ou legitimidade, mesmo que sob a justificativa de que sua parceira não corresponda às expectativas e padrões idealizados por ele. Os filmes apenas refletem essa concepção de que a traição feminina é desprovida de culpa. Elas não traem, a menos que o cônjuge faça algo de “errado”.
            O problema dessa concepção é que qualquer coisa acaba se tornando justificativa para o ato da traição. Tomemos como exemplo a estória do filme Por um Sentido na Vida (2002). Justine é mais uma mulher frustrada e insatisfeita com o casamento. Seu marido não tem outras mulheres, não a violenta física ou moralmente, tem um emprego razoável além de ter uma personalidade estável e bem humorada. Mas ele tem um grande problema: ultimamente não anda dando muita atenção a sua mulher, e isso é motivo de sobra para que Justine se senta insatisfeita e merecedora de vivenciar uma aventura extraconjugal. Parece algo do tipo: “ou andas na linha ou te traio”. Volta então, a idéia da fidelidade como moeda de troca.
            Existem duas fórmulas para legitimar a traição da mulher, sem tirar-lhe a auréola divina de “boa moça”: uma delas é fazer com que o atual marido, ou namorado (o oficial) se mostre como um verdadeiro canalha. No momento em que a garota se encontra mais perdida, se sentindo completamente culpada por estar apaixonada por outro homem (mas ainda assim resistindo à tentação), ela descobre que o seu parceiro oficial tem uma amante. A partir disso o caminho está livre. Ela pode se entregar à nova paixão sem se sentir culpada. Este é um dispositivo bastante usado, mas não o único.
            Ultimamente não tem se enfatizado tanto o mau-caratismo do marido (ou namorado). Ou seja, é como na estória do filme Por um Sentido na Vida. Basta apresentar a figura do marido como sendo uma pessoa desinteressante e negligenciador de carinho. Pronto, está legitimado. A protagonista tem, por causa disso, todo o direito de trair o seu marido, tendo como apoio o olhar benevolente e a aprovação geral do público feminino.
Marido por Acaso (2008), protagonizado pela atriz Uma Thurman, é outro exemplo bastante clássico. É mais uma das estórias em que a garota tem o noivo perfeito, - verdadeiro ícone de equilíbrio, harmonia e estabilidade, - mas acaba se deixando seduzir por um tipo desajustado. É a velha apologia ao bad boy, sujeito espontâneo, personalidade forte, de ações não-convencionais e atitudes socialmente irreverentes. Se a estrutura da personalidade do personagem traído não fosse deliberadamente caricaturizada para parecer um sujeito desinteressante e com certas inclinações materialistas, a protagonista não iria poder desfrutar do seu novo romance sem perder sua aura de integridade moral. Se não fossem ocultadas as implicações e conseqüências prováveis nessas situações, dificilmente a protagonista seria bem vista pelo público. Ou seja, nunca iremos ver numa estória de comédia romântica, o sofrimento da figura masculina traída, sofrendo. Isso, com certeza, despertaria no público imensa antipatia pela protagonista.
 
           Enfim, este é o modelo de comportamento feminino que, num movimento dialético, reverbera das telas para a realidade e da realidade para as telas. Provavelmente, se perguntassem à inteligente consultora sentimental Emma Lioyd (Uma Thurman), personagem do filme Marido por Acaso, as razões que a levaram a enganar o seu noivo, mantendo um caso amoroso com o desajustado Patrick, é possível que ela respondesse que jamais poderia ter se apaixonado por outro homem se o seu noivo fosse uma pessoa mais interessante ou atencioso, ou menos materialista. Prevalece a submissão e o assujeitamento feminino.

Por Harold

3 comentários:

  1. Concordo. Por ser mulher e por, vezes ou outras, assistir a tais filmes (ou talvez, por ter tido uma adolescência recheada destes)posso dizer que o cinema hollywoodiano "teima" em purificar a figura da mulher. Todas somos machistas ao acharmos que a traição das mocinhas destes filmes é justificada e simplesmente, nem nos damos conta disso. Por que não podemos trair por motivos inteiramente nossos e então, fazermos com que tais filmes sejam um pouco mais realistas? É, o público do cinema alternativo não é tão numeroso, não rende... Parabéns pelas ideias e pela escrita!

    ResponderExcluir
  2. Obrigado pelo comentário Anônima.

    É muito gratificante quando chega um comentário de alguém que a gente sabe que realmente leu o texto e gostou.

    ResponderExcluir
  3. Casino (2021) – Best Sites, Review & Ratings - Mapyro
    Discover the best 목포 출장마사지 gambling sites in 정읍 출장마사지 Canada and discover the best 강원도 출장샵 sites where you can play games 영천 출장샵 for real money. 보령 출장샵

    ResponderExcluir